Colocado: 02 Dezembro 2005 às 16:50 | IP Registado
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Olá caros companheiros.
Peço desculpa aos mais apressados mas hoje brindo-os com uma crónica mais longa e fora do comum. Assim tem de ser. Acontecimentos extraordinários, como a corrida de Fátima, devem ser tratados de uma forma distinta.
Ia-me eu aproximando de Fátima, no carro com o meu amigo Fernando Azevedo Mendes, conjecturando sobre as condições em que se iria desenrolar o GP de Fátima, quando, pairando sobre a longa recta, surgiu uma senhora de branco, envolta numa intensa aura que me sussurrou:
- “Meu filho, fui enviada para olhar por ti. Atenta que o dia está traiçoeiro, cuida de ti, tu não sabes guiar à chuva”.
- “Não sei guiar à chuva ?!”, exclamei chocado. “Como não sei se em todos os GPs que disputei debaixo de chuva a sério terminei no pódio e muitos deles em primeiro, com os mais variados adversários”.
- “Sim meu filho”, retorquiu, “mas contra adversários de fraco valor. Então já te esqueceste da triste figura que fizeste nem há um mês em Leiria ?”
- “Peraí, peraí, isso é outra história, em pistas a secar realmente eu não sei guiar. Mesmo assim ainda fiz a 3ª volta mais rápida da 1ª manga, ou será que isso para ti não conta ?”
- “Olha lá pá, agora falas sozinho ?” interpelou-me o meu amigo Fernando.
A senhora desvaneceu-se na chuva míuda da manhã e não voltei a pensar no assunto.
No decurso dos treinos, com a pista a secar, ia rezando silenciosamente para que secasse rápido, ou que a chuva a aparecesse - que assim não dava. A páginas tantas vi um estranho comissário de pista, com um capa vermelha e sinais visíveis na testa de que a mulher não lhe é fiel, a acenar-me empoleirado no sinal de partida. Dirigiu-me a palavra de forma inaudível. Nova passagem e pude ouvir claramente o que dizia:
- “Olha lá pá, queres que eu abra a torneira e encharque esta pista toda, para mostrares à branquinha que sabes mesmo andar à chuva ?”
- “Quem quer que sejas abre lá a torneira, que assim é que não dá mesmo”, repliquei.
Acabaram nessa altura os treinos. Fraca posição. Mas que a torneira estava aberta estava. Fui a correr às boxes vestir a capa de chuva. Preparava-me para agradecer, mas o estranho comissário tinha-se ido. Já eram sonhos de mais para uma manhã.
Quando me dirigia para a grelha, lá no fim, apareceu de novo a Senhora de Branco:
- “Acautela-te meu filho, vê como chove. Atenção à partida”.
- “Atenção à partida com certeza, já sabes que não sou de avarias. Agora pisga-te lá daí, que se me distraio tou feito”.
Arranquei sem azares e lá segui recuperando umas 2 ou 3 posições. Já na parte alta do circuito alguém me acertou na lateral traseira do kart e fiquei virado do avesso. Na berma estava um comissário a rir a bandeiras despregadas. Reconheci nele o meu amigo de Vermelho:
- “Então julgavas que era só pedir ? Tudo tem um preço. Tens chuva como querias, mas vais ter de recuperar do último lugar. Agora força, vai-te a eles. Demonstra-me a tua fibra.”
Bom, tinha de ser. Lá iria eu tentar recuperar.
As voltas iam passando e o Homem de Vermelho lá me ia incitando, brandindo-me com um pau comprido com uns dentes na ponta, para me incentivar a ir atrás deles. E fui passando os mais lentos, sem sobressaltos.
Na curva no final da recta da meta, volta após volta, a Senhora de Branco ia-me recomendando calma, curvada, as mãos juntas, como que rezando.
- “Calma filho que não sabes guiar à chuva”.
- “Qual calma, não vê a senhora que isto até se está a compor”, dizia-lhe eu.
- “Trava filho. Não consegues fazer a curva sem um cheirinho de travão. Trava !... Ai que agora é que é… Oh filho ias-me levando a capa e tudo. Já viste como fiquei carregada de gravilha. Acalma-te.”
- “Não quero ser desrespeitoso, mas não vê que isto não é a melhor altura. Se puder dê uma mãozinha para tirar daqui o kart, se não, pelo menos saia da frente.”
Depois de grande esforço e muito tempo, lá pus o kart em pista e segui. “Ora que isto, a mulher está mesmo a agoirar”, ia eu ainda a pensar. Nem duas curvas passadas, gravilha de novo. “Irra !”
Mais adiante, o estranho comissário lá continuava no seu lugar habitual a brandir a forquilha:
- “Anda homem. És mesmo lerdo, vai-te a eles.”
- “Olha, eu tinha pensado experimentar umas trajectórias diferentes, já que já não vou a lado nenhum.”
- “Anda mas é. Deixa-te disso. Vem já lá o primeiro classificado.”
- “Onde ?”
Virei-me a procurá-lo um breve segundo. Lá vinha ele, ainda umas curvas atrás de mim. Quando olhei para a frente já não foi a pista que vi, mas novamente um mar de gravilha. Nada feito, estava outra vez atolado.
- “Empurra-me lá com o pau, a ver se saio daqui”, pedi.
- “Tás parvo. Desembrulha-te. Já chega estar aqui à chuva só por tua causa. Belo nabo me saíste”.
E mais uma vez voltei à pista. Com o desalento normal numa situação destas. A Senhora de Branco já nem olhava à minha passagem. Ajoelhada, cabeça baixa, mãos juntas, como se realmente receasse pela minha vida – ou pela dela, que aquilo não era sítio para se estar ajoelhado num dia como este. Ainda lhe gritei que não temesse, que não costumo fazer duas vezes o mesmo erro – vou variando.
Passou-me então o Luís Vaz. A velocidade e a trajectória eram tais que parecia estar a correr em seco. O Comissário lá tentou mais uma vez incentivar-me:
- “Vai, segue atrás dele. Aprende com quem sabe”. Prosseguindo num tom ligeiramente mais baixo, “aquele sim é um verdadeiro discípulo, aprendeu tudo o que lhe ensinei”.
Tentei segui-lo, mas era impossível. Durante uma volta ainda tentei fazer as mesmas trajectórias, mas aí sim cheguei a temer pela vida. Voltei ao normal, a tempo de ver o Luís espetado. Estava mesmo a andar no fio da navalha.
No intervalo entre as mangas a Senhora de Branco aproximou-se e com a sua candura disse-me:
- “Oh filho, pregaste-me um susto grande susto. Porque é que não te resignas. Adopta o ritmo lento de que és capaz, não sabes para mais”.
- “Desculpe lá, mas a senhora percebe alguma coisa disto ?! Com essa roupa de certeza que nunca se sentou num kart”.
- “Lá nisso tens razão, mas moro mesmo aqui ao lado e de vez em quando dou um saltinho a ver as corridas. Ajudo os desgraçados que posso e sempre vou aprendendo umas coisinhas. Foge das zonas sujas da pista. Anda com segurança. Em dias como hoje só assim é que um desajeitado como tu consegue uma boa classificação”.
- “Nem tudo o que a Senhora diz é disparate, mas por favor deixe-me em paz. A sua presença só me perturba”.
Apesar de tudo, fui para os treinos a pensar nas sábias palavras. Face à primeira manga começava a duvidar seriamente da minha capacidade de guiar naquelas condições. Pior é que, por muito que tentasse, estava ainda pior que na manga anterior. Só a muito custo conseguia manter o kart na pista, já que este fugia de traseira em todas as curvas para a direita.
Parado já no meio da grelha, a Senhora dirigiu-se-me e tocou-me. Sosseguei-a.
– “Esteja descansada que vou com calma na partida. Por favor não se ponha outra vez a olhar-me daquela curva que fico nervoso”.
Partimos. Tudo bem, sem confusões até à segunda curva. Na segunda curva ganhei vários lugares entre a confusão. A coisa não estava mal. Fui seguindo com redobrada atenção e na dupla esquerda a seguir à ‘direita que nunca acaba’ lá estava de novo a Senhora:
- “Cuidado filho, aclama-te. Não te deixes entusiasmar. Trava com segurança. Não faz mal que um ou dois te passem. Estás muito mais à frente do que é o teu lugar normal”.
- “Ora, deixa-me lá. Eu sei muito bem trav…” Zzzzt !!!
Pião. Voltado ao contrário, vejo o Comissário vermelho a correr desembestado para mim.
- “Arranca já. Anda. Os outros que se desviem”.
- “Calma filho. Olha que se arrancas nem a alma se te aproveita”, contrapôs a Senhora.
Em verdade nem os ouvi bem. O meu sentido de auto-preservação fala mais forte nestas situações. Contei os karts que passavam 1, 2, 3… 10, lá vou eu. “Vamos a isto que se faz tarde”.
- “Anda meu completo inútil”, ainda ouvi o Comissário vermelho gritar, enquanto atirava o pau ao chão em desespero. Parecia-me ouvi-lo ir dizendo ao longe “Se não ganhas uns bons lugares nunca mais é ninguém. Dá-lhe gás, passa-os a todos”.
Dei gás. Fui-me aproximando e passando algumas prezas mais fáceis. O Comissário estava agora na ‘direita que nunca acaba’ a incentivar-me. Dizendo-me que se a fizesse com a roda traseira esquerda na berma quase não precisava de travar. Ia ganhando terreno.
- “Olha, meu abécula, não traves mesmo. Tira só gás”.
- “Tens a certeza ? OK, desta vez não travo”.
- “NÃO !!! Estava só a espicaçar-te ! TRAVA !!!...”
Ainda agarrei o kart, mas varri todo o exterior da pista, dancei na relva e ainda tive de tirar a capa dele que se me tinha prendido ao capacete.
Olhei para trás e vi o Comissário estendido com a cara na relva, a praguejar. Como estava sem a capa, podia agora ver que tinha uma estranha e longa cauda.
Foi um sossego encontrar a Senhora de Branco:
- “Acompanhe-me até ao final. Eu admito, não sei guia à chuva. Ajude-me por favor. Se tudo correr bem prometo que vou de kart até à Cova da Iria”.
- “Gosto ver que finalmente caíste na razão. Eu sei que é difícil admitir as nossas limitações. Terei todo o gosto em receber-te em minha casa”.
Segui até ao fim calmíssimo. Sem correr qualquer risco. Mesmo assim – ou talvez por isso -, fui subindo lugares. Via os meus adversários espalhados pelas bermas ou virados ao contrário. Não pude evitar sorrir para dentro ao pensar que o meu Comissário de Vermelho tinha resolvido dar-lhes conselhos a eles.
Cheguei ao fim com orgulho de rastos, mas cheguei. O meu ânimo nas conversas de boxes não podia estar pior. Apanhei o Zé Pedro Faria e já agora comentei que este kart, que fora o dele na primeira manga, era um bocado instável.
- “Instável ?! Era inguiável ! Mas olha que este que trocaste comigo agora não era melhor. Porcaria de karts !”
Vindo do nosso campeão isto era música para os meus ouvidos. Corri a procurar a Senhora de Branco.
- “Afinal se calhar não sou assim tão mau, o Zé Faria disse-me que os karts eram uma treta !”
- “Sabes o que te digo ? Não há paciência para ti. Admite a realidade, tu não sabes guiar à chuva. Tinhas-me poupado muito trabalho hoje se o admitisses logo quando to disse da primeira vez. Não venhas mais falar comigo. E escusas de passar lá em casa”.
Desapareceu como havia chegado e não mais a vi.
E assim decorreu o dia em que fiquei a conhecer mais um segredo de Fátima: Não sei guiar à chuva… pelo menos até prova em contrário.
Boas Festas para todos,
Luís “com um ganda melão” Soares de Mello
Editada por LSMello na 30 Dezembro 1899 às 00:00
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